Menos pobreza, mais desenvolvimento: como o trabalho decente pode transformar a produção de algodão

Projeto de Cooperação Sul-Sul trilateral promove boas práticas do Brasil para levar o trabalho decente à cadeia produtiva de algodão em países da África e da América Latina.

Notícias | 2 de Outubro de 2017
Debaixo do sol escaldante, o suor escorre pelo rosto do agricultor, que desde cedo percorre a plantação num ritmo contínuo, colhendo uma a uma as plumas brancas. Descalço e sem nenhum equipamento de proteção, ele está constantemente exposto a diversos riscos, como desidratação e intoxicação por agrotóxicos. Sua esposa e seus filhos também trabalham na colheita manual, nas mesmas condições. Apesar dele saber que a venda do produto não irá render muito, ainda assim é preciso fazer o máximo para garantir a subsistência de toda a família.

Membro de delegação do Mali observa plantação de algodão em Catuti (MG), Brasil.
Esta ainda é a realidade da agricultura familiar praticada por pequenos produtores de algodão em muitos países em desenvolvimento. O algodão é um dos produtos agrícolas mais importantes que existem, gerando renda para cerca de 250 milhões de pessoas em todo o mundo, empregando pelo menos 7% da força de trabalho agrícola global e, dessa forma, contribuindo para a segurança alimentar de milhões de famílias.

Cerca de metade de todos os produtos têxteis do planeta são feitos de algodão. No entanto, a demanda, a produção e os preços do algodão estagnaram nos últimos anos no mundo inteiro. Isso afeta direta e indiretamente uma parte significativa da população, já que aumenta a pressão pela redução de custos de produção, o que pode levar muitas vezes a uma piora das condições de trabalho e a violações graves de direitos, como o trabalho infantil e o trabalho forçado.

“Dessa forma, este setor ocupa uma posição estratégica na política de desenvolvimento e nos programas de redução da pobreza de diversos países da África, Ásia e América Latina. Ao gerar renda como produto de exportação, por exemplo, o algodão contribui para o acesso de pequenos agricultores e suas famílias a alimentos, moradia e muitos outros bens e serviços”, explica a Coordenadora do Programa de Cooperação Sul-Sul da OIT no Brasil, Fernanda Barreto. “Além disso, ele contribui para o crescimento econômico como um todo, especialmente em países em desenvolvimento cuja economia e produção agrícola dependem do algodão”.

Esse é o caso de Paraguai, Peru, Mali, Moçambique e Tanzânia, que participam do Projeto de Cooperação Sul-Sul “Algodão com Trabalho Decente”, junto com o Brasil. Executado pela OIT, em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e o Instituto Brasileiro do Algodão, o projeto busca promover o trabalho decente em países produtores de algodão na África e na América Latina através da Cooperação Sul-Sul, com a sistematização, o compartilhamento e a adaptação de experiências relevantes e boas práticas brasileiras nos outros países.

Os principais temas tratados pelo projeto são combate à pobreza e à discriminação, inclusão produtiva, diálogo social, prevenção e erradicação do trabalho infantil e do trabalho forçado, promoção do emprego de jovens e da igualdade de gênero, raça e etnia, e formalização do trabalho. “No Brasil, por exemplo, o trabalho infantil na produção de algodão está virtualmente erradicado, principalmente como resultado da atuação da inspeção do trabalho e do desenvolvimento de processos de certificação do algodão. Mas, infelizmente, este e outros problemas ainda persistem em outros países. Por isso, a Cooperação Sul-Sul é fundamental para compartilhar com esses países as possíveis soluções encontradas pelo Brasil”, afirma Barreto.

De Namialo a Catuti

Em Namialo – um pequeno município rural na província de Nampula, no norte de Moçambique – o Assessor Técnico da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (ABRAPA), José Tibúrcio, conversa com o Presidente do Fórum Nacional de Produtores de Algodão (FONPA) de Moçambique, José Domingos, em frente a uma grande máquina industrial azul. Trata-se de uma descaroçadora de algodão, que separa a semente da fibra branca e, assim, permite agregar valor ao produto. O resultado desse processo de beneficiamento é a pluma de algodão, que pode ser vendida por um preço maior que o do algodão-caroço.

Existem apenas duas dessas máquinas em Nampula, ambas doadas por uma ONG internacional. Uma está parada há anos, numa região da província sem energia elétrica. A outra é a descaroçadora que fica no Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM), em Namialo. Devido à falta de treinamento adequado dos operadores locais, ela processa apenas 20 fardos de pluma de algodão por temporada, além de ser utilizada para testes pelos técnicos do IIAM. Diante dessa situação, José Tibúrcio convida o moçambicano para conhecer uma cooperativa de produtores de algodão no Brasil e descobrir como aumentar sua produtividade.

Um mês depois, José Domingos está em Catuti, na região semiárida do norte de Minas Gerais, acompanhado da engenheira do Instituto do Algodão de Moçambique, Ancha Ainadine, e do engenheiro do IIAM, Manuel Maleia. Eles estão diante de uma descaroçadora de algodão idêntica à de Namialo, exceto pela aparência desgastada que faz a máquina de Moçambique parecer nova em folha. Também pudera: a descaroçadora da Cooperativa dos Produtores Rurais de Catuti (COOPERCAT) processa cerca de 1.500 fardos de pluma de algodão por temporada.

Trabalhador descarrega fardos de algodão em Nampula, Moçambique.
“Os produtores de Moçambique só vendem algodão em caroço. Aqui, os produtores adquiriram uma usina, onde eles agregam valor ao produto, descaroçando o algodão e vendendo as plumas. Isso traz mais renda ao produtor”, comenta Maleia. Durante a visita, ficou acertado que o projeto apoiará o país africano para capacitar os produtores de Namialo na utilização da máquina, o que vai permitir que eles aumentem sua produtividade e renda. Além disso, Domingos se comprometeu a transportar a descaroçadora que está fora de uso para uma região com energia elétrica, onde ela possa beneficiar agricultores familiares.

Em Catuti, onde o clima é muito parecido com o de Namialo, Maleia também se impressionou com o sistema de irrigação por gotejamento instalado por um dos produtores locais e pela tecnologia das sementes. Além disso, a organização da COOPERCAT também chamou a atenção dos moçambicanos, por causa das vantagens que o cooperativismo oferece ao agricultor.

“Antes eu era um produtor praticamente sozinho. Para comprar insumos, era complicado. Para vender [o algodão] era complicado, tinha que vender para atravessador, então o algodão acabava sendo inviável porque não alcançava um preço bom”, contou o produtor Hermínio Silva aos visitantes. “Hoje, através da COOPERCAT, a gente conseguiu equipamentos para plantio, que antes não tinha. Para comprar o insumo ficou mais em conta, porque a gente compra em parceria. Antes, o que eu vendia por R$ 20, hoje eu chego a vender por até R$ 40, transformando [o algodão] em pluma através da COOPERCAT. Tem outras vantagens também, como parcerias com instituições que fornecem técnicos para nos apoiar”.

Para Ainadine, os aspectos mais interessantes da visita a Catuti foram aprender como aumentar o valor do algodão e conhecer a estratégia do Brasil de ligar o produtor diretamente ao consumidor final. Como mulher moçambicana, ela destacou que deseja aproveitar a oportunidade de ver de perto a experiência de outros países para promover ações de empoderamento das mulheres nas zonas rurais de Moçambique. “Essa interação de vários países vai ajudar a mulher moçambicana a se desenvolver cada vez mais, ter mais rendimento, levar sua criança para a escola e poder tomar decisões nos encontros de negociação do preço mínimo do algodão-caroço, pois normalmente quem participa são os homens (...) Isso vai trazer grandes impactos sociais, econômicos e ambientais”, disse a engenheira.

Além dos moçambicanos, o projeto “Algodão com Trabalho Decente” também levou a Catuti uma delegação do Mali. Antes de ir a Minas Gerais no começo de setembro, todos participaram do 11º Congresso Brasileiro do Algodão em Maceió, o mais importante evento do ramo no país. Confira a galeria de fotos das visitas a Namialo e Catuti.

Delegações do Mali e de Moçambique durante visita à região produtora de algodão de Catuti (MG), acompanhados de membros da OIT, da Agência Brasileira de Cooperação, da Cooperativa dos Produtores Rurais de Catuti e da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão.


Em Moçambique, trabalho decente na produção do algodão

A visita da ABRAPA a Namialo foi parte de uma missão de prospecção do projeto, realizada no começo de agosto. Na ocasião, uma delegação completa do Brasil – incluindo representantes do Ministério do Trabalho (MTb) e da ABC – esteve em Moçambique para definir com representantes locais do governo e de organizações de trabalhadores e de empregadores as atividades que serão realizadas pelo projeto no país.

Com 90% de sua produção de algodão realizada por agricultores familiares em pequenas unidades chamadas “machambas”, o país africano tem mais de 1,5 milhão de pessoas que dependem da cotonicultura para geração de renda. Entre os principais problemas identificados pela OIT em Moçambique estão a ausência de formação profissional, trabalho infantil, informalidade, falta de acesso a proteção social e descumprimento de normas de segurança e saúde no trabalho.

A indústria têxtil do país está paralisada atualmente, o que faz com que toda a produção de algodão tenha que ser exportada. Portanto, as ações do projeto em Moçambique serão concentradas na promoção do trabalho decente na etapa de produção do algodão, com foco no fortalecimento das capacidades institucionais do governo moçambicano e do FONPA, o que contribuirá para melhorar o diálogo social no país. Além disso, a regulamentação do trabalho rural e o combate às piores formas de trabalho infantil também serão temas centrais da iniciativa.

No Peru, foco na indústria têxtil

Diferentemente de Moçambique, o projeto “Algodão com Trabalho Decente” encontrou uma cadeia produtiva mais complexa para ser trabalhada no Peru, onde parte da indústria têxtil é marcada por altas taxas de informalidade, baixa produtividade e condições de trabalho ruins, além de falta de acesso a proteção social e formação profissional.

No começo de 2017, o projeto realizou uma missão de prospecção ao país latino-americano para definir quais experiências brasileiras seriam mais relevantes para o contexto local. A delegação do Brasil – composta por membros da OIT, da ABC, do MTb e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) – participou de uma oficina com diversas autoridades locais e representantes do governo, empregadores, trabalhadores e sociedade civil peruanos.

Peru.
“O Peru possui uma ampla cultura de produção e aproveitamento da fibra do algodão que remonta a cinco mil anos atrás. Trata-se de um importante setor gerador de mão de obra, que emprega por volta de 400 mil trabalhadores, os quais representam 2,5% da população economicamente ativa ocupada a nível nacional”, afirmou na ocasião o Diretor da OIT para Países Andinos, Philippe Vanhuynegem.

Entretanto, ele alertou que a cadeia produtiva do algodão enfrenta problemas de competitividade em vários níveis: por um lado, a baixa rentabilidade do cultivo tem reduzido a superfície dedicada ao algodão; por outro lado observa-se uma contração da produção, das exportações e do emprego na indústria têxtil e de confecções.

Um estudo realizado pelo projeto para identificar as lacunas de trabalho decente na cadeia produtiva de algodão no país revelou que 99,5% da produção de algodão peruano está concentrada em pequenas unidades de produção familiar, caracterizadas pelo alto índice de pobreza, baixa renda, falta de acesso a proteção social e uso do trabalho infantil, especialmente na época de colheita.

Além disso, 77% das unidades são lideradas por homens, mostrando uma dificuldade especial para mulheres produtoras, que não contam com nenhuma proteção à maternidade. Uma das oportunidades identificadas no estudo é o fortalecimento das organizações de mulheres que produzem e comercializam o algodão nativo na região de Lambayeque, resgatando e valorizando conhecimentos ancestrais para promover a conquista da autonomia econômica.

As delegações de Brasil e Peru reunidas durante a oficina realizada em Lima.
“Temos um mercado de trabalho altamente informal, no qual a grande maioria dos trabalhadores não conta com direitos básicos trabalhistas e a cadeia de abastecimento e de produção, sobretudo nas zonas rurais, apresenta dificuldades maiores. Este projeto deve fornecer uma linha de base sobre a qual serão construídas as grandes políticas que estamos desenhando”, afirmou o Ministro do Trabalho e Promoção do Emprego do Peru, Alfonso Grados durante a abertura da oficina.

Dessa maneira, o plano de trabalho do projeto no país terá como foco a formação e capacitação profissional, segurança e saúde no trabalho, e prevenção e erradicação do trabalho infantil. Uma das principais atividades previstas é o desenvolvimento de uma nova metodologia de capacitação profissional para o sistema de formação público do Peru, com apoio do SENAI, a fim de aumentar a qualificação dos trabalhadores, especialmente jovens e mulheres, e melhorar a produtividade e a competitividade no setor.

A expectativa da OIT é de que os planos de trabalho específicos dos cinco países participantes do projeto comecem a ser implementados no começo de 2018.