Integração de culinárias do Brasil e Haiti abre caminho para inserir imigrantes no mercado de trabalho

Capacitação oferecida pela OIT inspira empreendedorismo e geração de renda para mulheres haitianas que vieram ao Brasil em busca de uma vida melhor.

Notícias | 20 de Julho de 2017
As histórias são parecidas: Nerzeline Jean, Chrisla Therasme, Yolene Jean e Dana Odilenne carregam no nome sua cultura e origem, o Haiti. Diante dos desafios da falta de emprego na terra natal, elas contaram com o apoio da família para se mudar para o Brasil e, hoje, vivem na cidade de Cuiabá, no Mato Grosso. Deixaram para trás mãe, esposo, irmã e filhos, na esperança de um futuro melhor.

Recentemente, estas quatro imigrantes tiveram a oportunidade de aprender receitas cuiabanas e criar pratos com influências haitianas durante um curso de culinária oferecido pela Universidade de Várzea Grande (UNIVAG), em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Durante 11 dias em abril, 32 mulheres haitianas participaram da capacitação desenhada especificamente para atender o desejo delas de inserção no mercado de produção de alimentos. O objetivo do curso foi estimular o empreendedorismo e a geração de renda para as trabalhadoras imigrantes.
Mulheres imigrantes participam de curso de culinário oferecido pela UNIVAG e sonham com um futuro melhor.
Durante a formação, elas aprenderam sobre as culinárias brasileira e regional de Cuiabá, mesclando esse novo conhecimento com a cultura haitiana para desenvolver releituras de pratos tradicionais do Brasil. As técnicas abordadas incluíram panificação e confeitaria, além de noções de sustentabilidade para o aproveitamento integral dos alimentos. O resultado foi um grande intercâmbio entre as duas culturas e uma porta de entrada para essas mulheres no mercado de trabalho, com produtos já conhecidos, mas com um novo valor agregado.

O biscoito francisquito, que é típico de Cuiabá, recebeu um novo ingrediente muito utilizado no Haiti, o amendoim, e se tornou o principal produto da nova marca Mulheres do Haiti, desenvolvida pelas trabalhadoras imigrantes num processo de branding comunitário. “A gente vai fazer francisquito para vender e dar dinheiro. De pouquinho em pouquinho", explica Dana Odilenne.

Mulheres do Haiti

O branding comunitário, utilizado em outros projetos da OIT, é uma metodologia que adapta a criação e a gestão de marcas, incentivando o protagonismo e incluindo os pequenos produtores no processo.

Segundo Nelson Andreatta, da agência QBrand, o branding comunitário empodera os envolvidos. Geralmente, no branding tradicional, quando se faz a reunião para a coleta de informações com o empreendedor, ele já participa de atividades empresariais e está empoderado. Com as trabalhadoras haitianas a situação é diferente e, segundo Andreatta, o branding comunitário é possivelmente “a única metodologia capaz de fazer que elas protagonizem suas vidas”.
A marca Mulheres do Haiti foi confeccionada por meio da metodologia de branding comunitária (Foto: QBrand)
Durante a oficina de capacitação, as mulheres conceberam seu produto e identificaram os valores associados à marca. Para verbalizarem seus desejos para a identidade visual, elas apresentaram as ideias e conceitos em cartazes com desenhos e colagens.

Em um trabalho pro bono, a QBrand desenvolveu o logotipo e o apresentou às trabalhadoras haitianas. Andreatta recorda que a aceitação foi unânime, pois a marca refletiu o desejo delas. O principal conceito foi união, valorizando elementos da bandeira haitiana e o sentimento de comunidade expressado pelas mulheres.

Além da identidade visual, foram criadas etiquetas e uniformes para a venda do francisquito. Os próximos estudos devem definir o ponto de venda dos biscoitos e as necessidades para a embalagem final do produto.

Parceria OIT-UNIVAG

A necessidade de apoio à comunidade imigrante na Grande Cuiabá surgiu em 2013, quando 21 trabalhadores haitianos foram resgatados de condições análogas à escravidão no setor de construção civil. Com a crise econômica no Brasil, a maioria dos egressos do trabalho forçado retornaram ao Haiti. Em março de 2017, foram identificadas 78 mulheres haitianas em situação vulnerável na região, entre elas Nerzeline Jean, de 26 anos. Ela conta que deixou tudo para trás no Haiti e, se estivesse em circunstâncias melhores, traria toda a família para o Brasil. Esse é um sonho comum às mulheres do grupo.

A capacitação foi desenvolvida em parceria pela OIT e pela UNIVAG, que oferece cursos de Nutrição e Gastronomia que são referências no Centro-Oeste: “Dentro do planejamento da extensão e da responsabilidade social da instituição, aceitamos e gostamos da proposta [de parceria]”, afirmou o Vice-Reitor da UNIVAG, Flávio Henrique Foguel.

A coordenadora do curso de Gastronomia da UNIVAG, Adriene Alexandra Paiva, disse que a intenção foi “mostrar a nossa cultura sem roubar a identidade delas”. Ela destaca a ideia das haitianas de acrescentar castanhas e ervas de seu país de origem como tempero para bolos e panquecas. Durante a formação, a barreira do idioma foi facilmente ultrapassada com o auxílio de uma intérprete e com a colaboração de quatro participantes, que se comunicavam bem em português e ajudavam as colegas.

A experiência foi muito bem recebida pelo grupo e gerou uma demanda pela continuidade das atividades. Em breve, a OIT pretende realizar uma nova oficina para que as trabalhadoras padronizem a receita do francisquito e definam uma apresentação profissional do produto pela marca Mulheres do Haiti. Segundo Foguel, “elas aprenderam a empreender”. Também há a expectativa de um novo curso de culinária para atender o restante do grupo de 78 mulheres inicialmente identificadas em condições vulneráveis.